Quando há propósito.
A palavra chave para explicar o
brilhantismo desse retorno de Grey’s Anatomy é “propósito”. Quando há, de fato, propósito para que algo
exista – mesmo quando aplicamos isso a um episódio de série de TV – esse algo
ganha a força de mudar as coisas, de criar consciência e gerar debate. É isso
que esse episódio nos traz. Esse episódio e a temporada como um todo, temos que
reconhecer. Uma temporada diferente de praticamente tudo o que já vimos antes
em Grey’s Anatomy, por causa de uma palavrinha: propósito.
Estou batendo muito nessa tecla
pelo seguinte: existe uma descomunal diferença entre o tipo de violência e de
dor que vimos em “The Sound of Silence”, para o tipo de violência e dor que
essa mesma série já nos trouxe e costuma trazer. Podem analisar todas as
mortes, todas as cenas de acidentes, de assassinatos, de mutilações. Façam isso
e percebam o que temos aqui, o tal do propósito.
Esse é um episódio incomparável.
Grey’s Anatomy já falou de assuntos importantes, mas nada se iguala ao que está
sendo feito pelo empoderamento feminino.
Por isso, não digam que Shonda Rhimes e sua equipe fizeram DE NOVO a personagem
sofrer ou o público sofrer. Eles não fizeram nada DE NOVO. Nesse caso é apenas
NOVO. Não confundam com a estupidez gratuita daquela queda de avião, só para
citar um exemplo. Nunca se falou tanto sobre o que ser mulher e ter sua voz
calada dia após dia. Nunca se falou tanto sobre violência endêmica contra a
mulher e sobre a aceitação que existe entre todos nós de que “acontece”, é “normal”,
“faz parte”.
Reparem que esse episódio não usa
de artifícios óbvios. Meredith não foi atacada de propósito (olha essa
palavrinha de novo!), mas a ideia é fazer pensar. O texto, ou a falta dele, são
as peças chaves para desvendar os significados ocultos em cenas sutis. Se você
viu um episódio em que Meredith sofreu um ataque de um paciente, volte e faça o
dever de casa, você viu esse episódio do jeito errado.
O impressionante é que todo mundo
sabia. Tivemos spoilers a respeito pipocando há meses, desde o inicio do hiatus,
mas eu não estava nem um pouco preparada para levar essa sequencia de socos no
estômago. A narrativa inicial avisa: vozes femininas não são ouvidas. Há até
motivos científicos que explicam isso, então cabe a nós, mulheres, falar o mais
alto possível e mostrar que estamos aqui, existimos, pensamos, sentimos, temos
talento. A interpretação é ampla aqui e ganha um lado obscuro quando ouvimos o
seguinte: Silencio pode matar. E mata mulheres todos os dias, quando todos nós
nos calamos diante de injustiças ou de violência.
Então, o ataque não foi
planejado, pensado e apoiado em crueldade, mas fica o aviso: pode ser. Na
maioria das vezes é. Meredith sofreu danos terríveis, dores que não desejamos a
ninguém e vejam bem, ela tinha o apoio de amigos, família e de uma equipe
médica, mas na maioria das vezes... Quem deveria ajudar finge que não viu,
prefere não se meter. Esse é o tipo de ideia por trás desse roteiro provocativo
e dessa atuação impecável de Ellen Pompeo. Uma atriz que pegou um roteiro
poderoso e passou todas as emoções possíveis com seu olhar, com poucos gestos,
com meia dúzia de grunhidos. Foi esplêndido. Fez-me chorar do inicio ao fim e
sentir com ela cada segundo de agonia e desespero.
Como não se agitar diante do
espancamento? Da inabilidade de ouvir? De mover-se? De estar sozinha e
confinada? Assustada. Acuada. Infeliz. Magoada. Irada. Sem voz. Ellen Pompeo
foi mais que Meredith Grey. Ellen Pompeo foi todas as mulheres de uma vez só.
E embora ela tenha sido a grande
estrela do episódio, a serenidade de Richard chama a atenção para o perdão que
liberta e que permite seguir e frente, mesmo depois de uma avalanche de
tragédias. É assim que ela dá uma nova chance a si mesma, à Penélope, à Amelia
e até a seu agressor. Esse é o momento em que a personagem recomeça de fato e
isso é notável pela “libertação” de Alex, um amigo leal, mas que precisa seguir
com a própria vida.
Esse recomeço nos mostra,
portanto, que haverá ainda um longo caminho a percorrer, seja para a série,
para Meredith e para nossa sociedade como um todo. Só sei que nunca vou
esquecer desse episódio e do que ele significa. Sem dizer quase nada, essa
série falou por todas nós e mostrou que a solução é não ficarmos calada, algo
que lembra aquela hashtag poderosa: #vamosfazerumescândalo. Vamos mesmo. Seja
contra violência ou contra a desigualdade em todos os níveis.